Cada um sente a dor como quer
Sábado, dia 04, à noite, cheguei à terra dos meus avós com a minha tia para passar cá uns dias.
Domingo de manhã o meu avô cai, bate com a cabeça no cimento da entrada da casa e faz um traumatismo craniano. Vai para o hospital e fica lá.
Sábado, dia 11, à noite, a minha avó tem um AVC e vai para o hospital.
No domingo de manhã o hospital liga-nos a dizer que o meu avô faleceu.
A minha avó, por estar hospitalizada, não sabe de nada. E nós temos receio de lhe dizer...
Segunda, dia 13, à tarde, dá-se o velório. O meu primo entretanto chega de Lisboa. E eu vou a Viseu dar a notícia à minha avó.
Ela suplica à médica que a deixem sair para ir ao funeral, mas fica mais uma noite no hospital para ser acompanhada. Se ficar estável, dão-lhe alta.
Terça de manhã vamos buscá-la. Às 9h30 dá-se a missa e depois o funeral. Enquanto isso acontece eu vou a Moimenta da Beira aviar a receita médica dela.
Cada um sente a dor à sua maneira
Não entrei uma única vez na capela onde estava o caixão aberto, nem me atrevi a olhar lá para dentro. E também não fui ao funeral.
Não quis.
Quando chegou a altura do velório, e antes de eu ir ter com a minha avó, a minha mãe virou-se para mim e perguntou-me:
- Não vais à capela ver o teu avô?
- Não.
- Mas é a última morada dele.
- Não é não mãe. A última morada dele é aqui, na minha cabeça e no meu coração.
É onde guardo a última imagem dele. Ainda vivo. No hospital, é certo. Mas com boa cara. Essa é a última imagem que quero recordar dele, juntamente com todas as outras que se formaram lá atrás.
São imagens da minha cabeça que estão diretamente ligadas ao meu coração. É lá que ficam guardadas, juntamente com o adeus que lhe disse quando estava sozinha sentada na varanda da casa dos meus avós enquanto decorria o funeral.
O sentir não tem regras
Quando o meu primo – dois anos mais novo que eu – soube que eu não ia ao velório nem ao funeral, a sua cara disse-me tudo. Eu bem sei que ele também não gosta destas coisas…
Mas foi.
Disse que ia por respeito.
Eu pergunto: Respeito a quem? A ele não era certamente, porque ele não tinha vontade nenhuma de ir ver o avô no caixão.
Seria então respeito ao nosso avô? À minha tia (mãe dele)? Ou às “regras sociais”? Aquelas que nos dizem o que devemos fazer em determinadas situações. Para que ninguém pense outra coisa de nós. Nem nós mesmos, por não estarmos a fazer o que é suposto fazer.
Mal chegou a casa – passados nem 10 minutos – disse-me logo:
- Ainda bem que tu não vais lá! Eu nem consegui lá ficar muito tempo! O avô está com um aspeto horrível! Da última vez que o vi (há pouco mais de um mês) ele não estava assim. Está magro.
Mas não estava. Disse-me a minha tia que estava igual. Só que o meu primo não respeitou aquilo que (verdadeiramente) sentia e será essa agora a última imagem que guardará dentro de si.
Fazemo-lo por nós ou pelos outros?
Quando vinha no carro com a minha avó, depois de a termos ido buscar ao hospital, avisei-a que não ia ao funeral. Ficou desgostosa. E não compreendeu porquê.
Na cabeça dela não fazia sentido. Na religião dela também não. Afinal de contas, como é que eu não ia ver o avô?
Expliquei-lhe que eu não sentia as coisas da mesma maneira. Que não gostava destes rituais. E que me sentia melhor assim.
Depois do funeral fui com a minha tia ao cemitério. Ela mostrou-me a campa do meu avô e todas as coroas de flores que ele recebeu. Reparou que algumas já estavam a murchar.
Enquanto saíamos de lá ela contava-me como eram caras as coroas de flores e que para ela não fazia sentido nenhum gastar tanto dinheiro em tantas flores que no final acabavam por não durar nada.
Perguntei-lhe o que é que ela faria com esse dinheiro então. Disse-me que daria aos pobres.
Também lhe perguntei porque é que acabaram por mandar fazer duas coroas (em nome dela e do meu primo, e em nome da minha mãe e meu), em vez de se fazer só uma para todos como se chegou a falar inicialmente. Disse-me que foi porque a tia dela achava que era melhor assim…
Não há certo nem errado. O que há são simplesmente formas diferentes de sentir, pensar e agir.
Uma vez li uma história sobre um homem que estava a colocar flores no túmulo do seu parente, quando de repente repara no chinês que colocava um prato de arroz na lápide ao lado.
- Desculpe, mas o senhor acha mesmo que o seu defunto virá comer o arroz?
- Sim, normalmente à mesma hora em que o seu vem cheirar as flores.
Esta história faz-me recordar algo parecido que se passou comigo, quando estava com uns amigos a contar como tinha sido a minha viagem à Índia. A certa altura falava-lhes dos rituais fúnebres que acontecem em Varanasi, onde eles queimam os corpos em grandes fogueiras.
- Ai, que horror! Que barbaridade! – exclamou a mulher de um amigo meu.
- E enterrar os corpos debaixo da terra até eles serem totalmente comidos, também não é? – perguntei eu.
Tudo depende da perspetiva com que se veem as coisas. Bem como daquilo que cada cultura ou religião nos leva a pensar.
“O essencial é invisível aos olhos”
Não tenho nada contra os nossos rituais fúnebres. Nada mesmo. Cada um sente a dor como quer. A forma como cada um se despede dos seus entes queridos é consigo.
Se a minha tia se sente melhor dando beijos e abraços ao seu falecido pai que se encontra no caixão, então tudo bem.
Mas se eu prefiro ficar sozinha na varanda a falar com o meu avô – enquanto me cai uma espécie de pólen em cima vindo não sei de onde e que eu escolho tomar como alguma espécie de sinal – tudo bem também.
O que interessa mesmo é o sentimento. E esse ninguém consegue vê-lo, mesmo que se apareça em todos os funerais da família e amigos.