Propósito de Vida
Os livros do hipnoterapeuta Brian Weiss foram os primeiros que li sobre o tema das vidas passadas. A partir daí, a forma como eu olho para a vida passou a ser diferente. Apesar de neste livro o autor nos levar também para as vidas futuras dos seus pacientes, a história que quero partilhar hoje contigo é sobre David, um homem que, apesar de ter tudo para ser feliz, sentia um grande vazio na sua vida que não conseguia preencher ou perceber porquê.
***
Lição de vida: Espiritualidade
A família de David era aristocrata, de linhagem da antiga Nova Inglaterra, e ele tinha feito o caminho todo desde Boston para me ver. Tinha ouvido falar do trabalho que eu estava a fazer e achava que um dos meus CDs de regressão o tinha ajudado a relaxar, embora não tivesse vivido uma vida passada. Além disso, tinha experimentado a psicoterapia convencional e não lhe tinha feito quase nada.
- Planeei ficar uma semana - disse ele. - Acha que conseguimos alguma coisa nesse período de tempo?
- Podemos tentar - respondi, reparando no corte impecável das suas calças e na insígnia do cavalinho do polo na sua camisa. - Posso agendá-lo para três sessões. Mas não podemos fazer nada enquanto não me disser o que o trouxe aqui.
Para minha surpresa, a pergunta pareceu confundi-lo.
- Não tenho bem a certeza - disse por fim. - Eu sou… eu sou infeliz.
- A nível profissional? A nível pessoal?
- Nos dois… Em nenhum dos dois.
- Em qual?
- A questão é que eu não devia ser infeliz.
- A infelicidade não é uma questão de «dever». É um estado de espírito.
- Sim, claro. Mas é que quando penso na minha vida, o que acontece com muito mais frequência do que desejaria, não vejo uma única coisa pela qual ser infeliz.
- A sua profissão? - perguntei.
- Advogado. Trabalho na firma do meu pai, e tenho-me dado bem. Fui feito sócio em dois anos, e, devo dizê-lo, não foi por nepotismo.
Ainda assim, existe muitas vezes fricção quando um filho trabalha para um pai.
- Acha desconfortável ter de responder perante o seu pai?
- De modo nenhum - disse ele com ênfase, pontuando as palavras com uma pequena pancada das mãos. - O meu pai deixa-me operar de maneira independente. Ele educou-me para ser dono do meu nariz, tal como fez a minha mãe. Nunca me contesta e quase nunca me vê no escritório. Acho que passo mais tempo com ele socialmente do que no trabalho.
Quando os psiquiatras iniciam a busca da raiz do problema de um paciente, olham muitas vezes primeiro para a família. Estaria aqui a funcionar alguma dinâmica inconsciente que David não reconhecia?
Sondei mais.
- A sua mãe está viva?
- E de boa saúde. - Ele sorriu. - Está na administração da ópera, do ballet, do museu de Belas-Artes. E é uma grande anfitriã. - Ele levantou a mão, antecipando a minha pergunta. - Sim, ela teve imenso tempo para mim quando eu era miúdo, e imenso tempo para o meu irmão e para a minha irmã também. Temos uma relação ótima.
- Disse que vê o seu pai socialmente.
- E a minha mãe também, é claro. têm um casamento sólido há quarenta anos.
- Quantas vezes?
- Talvez uma vez por semana. Cerca de três vezes por mês.
- Você é casado?
Outro bater de mãos.
- Com certeza. Com a divina Leslie.
Estaria ele a ser irónico?
- Ela também é advogada?
- Não, mas está numa profissão aliada. É atriz. Conheci-a no meu segundo ano de Direito em Harvard. Fui a um espetáculo de O Conto de Inverno, no Brattle Street Theatre, e fiquei tão atordoado com a sua Perdita que fui aos bastidores e convidei-a para sair. Foi para minha sorte eterna que ela disse que sim nessa altura e que sim quando a pedi em casamento há cinco anos.
- Os seus pais aprovaram?
- «Herdeiro de Boston desposa atriz humilde»? Não sei como se sentiram de início. Como disse, eles deixam-me fazer as minhas próprias escolhas de vida. Mas agora adoram-na.
- Têm filhos?
- Nenhum. Mas isso vai deixar de ser verdade daqui a cinco meses. A amniocentese diz que é um rapaz. Voilà. A linhagem continua! O nome é continuado!
Ele disse-me tudo isto com uma sensação de prazer, até de divertimento. Depois inclinou-se para a frente e a sua expressão ensombrou-se.
- Dr. Weiss, é mesmo essa a questão. Eu amo os meus pais, tive uma infância maravilhosa, tenho uma mulher espetacular, sou bem educado, bem alimentado, bem vestido e tenho uma boa casa. Temos dinheiro suficiente para evitar qualquer desastre ou para nos levar a qualquer lugar do planeta a que queiramos ir. Sou verdadeiramente o homem sem uma única preocupação. No entanto, quando penso nestas coisas, e muito embora saiba que são verdade, há um problema fundamental: o homem que acabei de descrever não é o homem que vive dentro da minha pele.
Esta última frase foi acompanhada por um soluço e um olhar de angústia tão intenso que eu pensei mesmo que estivesse a olhar para um homem diferente.
- Pode ser mais específico? - perguntei.
Ele recuperou com um esforço.
- Quem me dera poder ser. Quando tento colocar por palavras aquilo que sinto, soa a queixume. As queixas irrisórias de um narcisista demasiado privilegiado.
- Não interessa ao que soa, e obviamente as queixas não são irrisórias. Você está a sofrer.
Ele lançou-me um olhar de gratidão e respirou fundo.
- Muito bem. Aqui vai: não sei porque fui posto nesta Terra. Sinto-me como se estivesse a patinar num lago gelado chamado vida e que debaixo da água há uma profundidade de trinta metros. Sei que devia nadar nele, que seria bom se pudesse experimentá-lo, mas não sei quebrar o gelo. Estou confuso acerca do meu lugar no mundo. Sim, estou feliz por trabalhar para o meu pai, mas só existe uma definição de mim: o filho do meu pai. Eu sou mais. E sou mais do que outra definição: bom marido prestes a tornar-me bom pai. Valha-me Deus - prosseguiu, com as palavras a soar espantosamente alto no meu consultório -, eu sou invisível. A vida limita-se a assobiar através de mim como o vento.
A sua necessidade de respostas era profunda, eu sabia. Mais do que queixumes, as suas queixas eram existenciais, um grito por uma definição que ele não tinha sido capaz de encontrar.
Talvez tivesse andado a procurar no sítio errado.
David contou-me que quando usava os meus CDs em casa geralmente ficava tão relaxado que adormecia. Não há nada de mal nisso; significa simplesmente que a pessoa está a ir muito a fundo. Mas a sua «prática» anterior facilitou a indução hipnótica no meu consultório. Em minutos, ele estava num transe profundo.
- Estamos no século XII - disse ele lentamente, como se estivesse a tentar espreitar a sua vida pelo lado de fora. - Sou uma freira, a Irmã Eugenie, e trabalho num hospital na periferia de Paris. - Ele estremeceu. - É um sítio assustador, escuro e frio, e a minha vida é muito dura. Todas as camas estão cheias no quarto em que trabalho, e sei que há outras pessoas lá fora à espera que alguém morra, para poderem ter o espaço. Os corpos dos doentes estão cobertos de bolhas - bolhas cheias de líquido. O cheiro é horrível. Mesmo ao frio, estas pobres pessoas têm febres altas. Transpiram e gemem. O seu tormento é terrível de se ver.
»Não me importo de trabalhar ali. Uma das pacientes é uma rapariga de onze anos, órfã, com olhos brilhantes da febre, lábios ressequidos, rosto enrugado como o de um macaco. Ambas sabemos que ela vai morrer, que não há nada que eu possa fazer por ela. No entanto, está espirituosa, consegue fazer piadas, e os outros doentes adoram-na. Eu adoro-a acima de tudo, e trago-lhe água e lavo-lhe a testa - faço isto por todos - com uma ternura especial.
»No dia em que morre, ela olha para mim e diz: «Tu entraste na minha vida e trouxeste-me paz. Fizeste-me feliz.» Feliz! Consegue imaginar? Esta pobre rapariga, em agonia, diz que está feliz por minha causa. Não tenho a certeza da razão, mas redobro os meus esforços pelos outros doentes, na esperança de lhes conseguir trazer a mesma felicidade ou, pelo menos, alguma paz também. E resulta! Sei que a minha presença os acalma e formam-se laços entre nós - laços espirituais, embora nenhum tão forte como entre mim e a rapariga órfã.
O seu rosto refletia a sua própria paz interior enquanto falava. A sua voz era suave, reverente, consciente de milagres.
- Eventualmente, também eu sucumbi à doença. A dor era excruciante, as, embora o meu corpo sofresse, a minha mente e alma estavam felizes. Eu sabia que tinha levado uma vida útil, e esse era o plano de Deus para mim.
(…)
- Nunca tive este tipo de pensamento na minha vida - disse ele. - Não sou religioso. Não acredito em Deus. A ideia de que em tempos fui uma freira parece-me absurda.
- Foi uma vida que viveu - disse eu. - Certamente uma vida importante, uma vez que foi até ela tão rapidamente e foi tão vívida.
- Não pode ter sido uma fantasia - concordou ele. - É demasiado remoto de qualquer coisa que eu tenha imaginado no passado.
- Então acha que é real?
Ele levantou uma mão.
- Eh lá! Não iria tão longe. Mas digo-lhe uma coisa, Dr. Weiss. Foi a experiência mais incrível e emocionante de que me lembro.
- Talvez a Irmã Eugenie seja a pessoa dentro da sua pele - disse eu. - Talvez ela seja o David de que anda à procura.
Ele pensou por um momento.
- Teremos de ver, não é?
A sessão estava terminada. Ele ficou parado e depois bateu as mãos.
- O que é que se segue?
(…)
Quando David voltou para a sua última sessão, visitámos duas vidas passadas adicionais. Mais uma vez o tema das suas regressões anteriores manifestou-se, e ele foi capaz de o articular: existe um valor supremo em ajudar os outros porque cada vida, cada manifestação física da viagem da alma, é altamente preciosa.
Na primeira vida passada daquele dia, ele era um médico no Império Romano durante o que lhe pareceu ser um surto da peste. Viu-se a si próprio a enrolar ligaduras à volta das pernas dos seus pacientes, não por causa das feridas mas porque as ligaduras iriam enxotar as pulgas que, deduziu ele, vinham de ratazanas infetadas e transmitiam a hedionda doença aos humanos. Avisou todas as pessoas para se manterem afastadas das ratazanas, particularmente das mortas (as pulgas deixavam os cadáveres) e para se manterem limpas e dentro de casa o máximo de tempo possível. Ele salvou muitas vidas, mas a epidemia propagou-se nas áreas onde os seus conselhos não eram conhecidos ou seguidos. Milagrosamente, ele não contraiu a doença e sobreviveu para combater outras doenças enquanto médico reverenciado e respeitado.
A sua memória seguinte de vida passada estava fortemente ligada à sua vida no Império Romano como à vida em França, em que era uma freira a dar assistência às vítimas de varíola. Mais uma vez, estava na Idade Média, numa época anterior, e mais uma vez a doença estava descontrolada - uma peste que afetava a maior parte da Europa. Ele trabalhava de modo frenético, dando assistência ao número esmagador de vítimas da cidade em que vivia (podia ser Londres; ele não tinha a certeza), mas os seus esforços foram insuficientes contra a pandemia. Mais de metade dos cidadãos da cidade morreram, tal como toda a sua família. Exausto pelas suas lutas, ficou desesperado e amargo, cheio de culpa e remorso por ter falhado tantas vezes. Ele conseguiu ver em frente naquela vida, dizendo-me que viveu mais dez anos mas que nunca conseguiu realmente perdoar-se a si próprio.
- Porque é que foi tão duro consigo mesmo? - perguntei. - Não havia nada que pudesse fazer.
- Porque me esqueci das ligaduras - disse ele a partir do seu estado superconsciente, flutuando sobre o seu corpo da Idade Média. - Elas podiam ter afastado as pulgas.
Eu estava estupefacto. Ele trouxera memórias de uma anterior vida passada para a Idade Média! Era uma indicação do quanto as suas vidas estavam ligadas e de como todas as nossas vidas passadas permanecem connosco à medida que progredimos. Poucas pessoas na Idade Média tinham o conhecimento dos romanos de que as pulgas provenientes de ratazanas infetadas espalhavam a doença, mas ele sentiu que devia ter explorado o que tinha aprendido em Roma e evitado pelo menos algumas das mortes, talvez salvando também a sua família.
(…)
Gostava de ter passado mais tempo com David para explorar mais as suas questões, mas ele tinha de ir para casa ter com a sua mulher grávida e o negócio da sua família. Pedi-lhe para se manter em contacto comigo, para me fazer saber como as três sessões o tinham afastado, mas preocupava-me que o ambiente de conforto e facilidades em que ele vivia o voltasse a seduzir.
Isso não aconteceu. O conhecimento de vidas passadas e futuras ajudou David a definir o seu papel no presente. Despediu-se da firma do seu pai e regressou a Harvard para estudar Direito Ambiental. Sentia que tinha de opor-se aos efeitos deletérios de certas práticas dos grandes negócios - muitas das quais defendidas pela sua antiga firma - para poder alterar o futuro para melhor. Estava especialmente interessado nas questões do aquecimento global, na acumulação descuidada de subprodutos tóxicos perenes dos processos industriais e na consequente extinção de espécies inteiras de animais e plantas, sem o entendimento de que o que a sua ausência iria fazer ao equilíbrio da natureza. Finalmente, David está a ter significado e propósito na sua vida; ele está «completo». A sua confusão dissipou-se e ele está alinhado com o seu destino.
Excerto retirado do livro “Muitos Corpos, Uma Só Alma” do Dr. Brian Weiss (Editora Pergaminho)