O Pote Rachado

Havia um carregador de água que, diariamente, carregava sobre os seus ombros até à casa do seu senhor dois grandes potes pendurados em cada ponta de uma vara. Um dos potes tinha uma racha, enquanto que o outro era perfeito e, por isso, chegava sempre cheio de água até ao final da longa caminhada entre o poço e a casa do Mestre. O pote rachado chegava sempre pela metade.

Assim foi durante dois anos. Todos os dias, o carregador entregava um pote e meio de água na casa do seu Mestre.

O pote perfeito estava orgulhoso das suas realizações. Porém, o pote rachado estava envergonhado da sua imperfeição e sentia-se miserável por só conseguir realizar apenas metade do trabalho que deveria fazer.

Um dia decidiu falar com o homem quando se encontravam à beira do poço.

- Estou envergonhado e quero pedir-te desculpa.

- Porquê? - perguntou o homem. - De que estás envergonhado?

- Nestes dois anos só fui capaz de entregar apenas metade da minha carga, porque esta racha que tenho aqui de lado faz com que a água verta por todo o caminho até à casa do teu senhor. Por causa do meu defeito tens de fazer todo esse trabalho e não ganhas o salário completo dos teus esforços.

O homem ficou triste pelo sentimento do velho pote e disse-lhe amorosamente:

- Quando regressarmos a casa do meu senhor quero que admires as flores ao longo do caminho.

De facto, à medida que eles subiam a montanha, o velho pote rachado notou flores selvagens ao longo de todo o caminho e isso alegrou-o. Mas, no fim do caminho, o pote ainda se sentia mal porque tinha vertido metade da água e pediu novamente desculpas ao homem pela sua falha.

O homem disse então ao pote:

- Notaste que pelo caminho só havia flores do teu lado? Eu, ao conhecer o teu defeito, transformei-o em vantagem. Lancei sementes de flores no teu lado do caminho e, todos os dias, enquanto voltamos do poço tu rega-las. Durante dois anos eu pude colher flores para ornamentar a mesa do meu senhor. Se não fosses da maneira que és, o meu Mestre não teria essa beleza em sua casa.


Nota: Enquanto passava para aqui esta história, lembrei-me de um vídeo que uma vez vi sobre uma lindíssima arte japonesa que transforma louça partida em peças ainda mais bonitas e únicas. É um vídeo muito bonito e inspirador. Clica aqui para o poderes ver.

Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro.

- Clarice Lispector

O que aprendi com esta história?

Cada vez mais tenho-me apercebido de como o ambiente à nossa volta tem um profundo impacto na nossa autoestima, por mais que nós até possamos trabalhar nela.

Há uns anos atrás, por exemplo, ter nascido como albino ou com vitiligo era caso para a pessoa querer passar despercebida ao máximo dos olhares da multidão. Hoje em dia é algo valorizado pela indústria da moda.

Simplesmente, porque é diferente.

Antes, ser diferente, era um problema. Agora, ser diferente, é uma vantagem. Para quem tem a confiança lá em cima. Caso contrário, por mais que o mundo veja beleza nas nossas “rachas”, se nós também não gostarmos delas, não há nada nem ninguém que nos faça colocar, com o maior dos prazeres, à frente dos olhares de uma câmara por exemplo. A autovalorização é, e sempre será, um dos sentimentos mais importantes que nós podemos ter por nós.

Mas independentemente de como está a nossa autoestima, quem define se certas características do nosso corpo ou da nossa personalidade são motivo para serem apreciadas ou rejeitadas?

Infelizmente, uma parte, é o exterior.

É o ambiente onde estamos inseridos. As pessoas que nos rodeiam. Os carregadores de potes com quem crescemos e partilhamos a nossa vida. Os avaliadores do nosso anel. É por isso que é tão importante sabermos escolher bem as pessoas com quem mais estamos e os lugares que mais frequentamos.

A nossa confiança é permeável ao exterior. No sítio “errado” e com as pessoas “erradas” ela pode ser completamente destruída. Já no sítio “certo” e com as pessoas “certas” ela pode ser levada a um ponto que nem nós pensaríamos ser possível. Pois afinal, quem se lembraria em pegar numa “racha” sua e construir com ela um belo jardim?

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