“Dar uma hipótese à bondade”

“Cartas para Sam” é um dos livros mais profundos e tocantes que já li. Um verdadeiro bálsamo para algumas das nossas maiores dores da vida, escrito por um psicólogo que ficou tetraplégico num acidente de viação e dedicado ao seu neto Sam que foi diagnosticado com uma forma grave de autismo. Hoje quero partilhar contigo um dos capítulos que mais me tocou e que muito me ensinou.

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Dar uma hipótese à bondade

Querido Sam,

No reino animal, a vulnerabilidade pode desencadear a agressão noutros animais. Por vezes, isto também acontece com os humanos. Mas eu descobri que, em vez disso, a minha vulnerabilidade desencadeia a bondade nas pessoas. Vejo-o todos os dias, quando as pessoas me seguram a porta para eu passar, me deitam natas no café ou me ajudam a vestir o casaco. E descobri que, quando as pessoas são gentis e prestáveis, sentem-se felizes. Da minha perspectiva da cadeira de rodas, eu vejo o que as pessoas têm de melhor, mas por vezes, sinto-me triste porque aos que parecem independentes - invulneráveis - escapa-lhes a bondade que eu vejo todos os dias. Eles não chegam a ver o lado bom dos outros.

Sam, a tua vulnerabilidade, a par do teu sorriso radiante, irão provavelmente atrair as pessoas que querem ser bondosas, que querem ajudar, que se sentem generosas. Mas e quanto a ti? Questiono se tu serás capaz de expor o teu lado bom. É frequente nós tentarmos esconder a nossa vulnerabilidade de todas as formas possíveis, o que pode envolver muito fingimento. Mas só quando páras de fingir que és corajoso ou forte é que permites que as pessoas te mostrem a bondade que existe nelas.

Deixa-me contar-te uma história.

No mês passado, num dia muito ventoso, quando eu vinha de uma palestra que dera a um grupo em Fort Washington, comecei a sentir-me mal. Estava a sentir espasmos cada vez mais fortes, nas pernas e nas costas, e a sentir-me ansioso só de pensar em como seria difícil a viagem de regresso ao escritório. Para piorar as coisas, sabia que teria de passar por duas das vias rápidas mais movimentadas perto de Filadélfia - a Schuylkill Expressway, com quatro faixas e a Blue Route, de seis faixas.

Tu já andaste na minha carrinha, pelo que sabes que está preparada com tudo o que preciso para conduzir. Mas, provavelmente, ainda não te apercebeste que eu conduzo mais devagar do que outras pessoas. Isto porque tenho dificuldades com o controlo do corpo. Tenho cuidados especiais em dias ventosos, quando a carrinha pode ser sacudida por correntes de ar inesperadas. E, se estiver com problemas, como espasmos ou tensão alta, meto-me na faixa mais à direita e conduzo bem abaixo do limite da velocidade.

Quando eu conduzo devagar, as pessoas que vêm atrás de mim têm tendência para se sentir impacientes. Há sempre alguém que se põe ao meu lado, buzina, olha e me mostra como o seu dedo médio é comprido. (Não percebo porque é que as pessoas têm tanto orgulho no seu dedo médio, mas há muitas coisas que eu não percebo.) Estes condutores zangados acrescentam stresse a uma experiência de condução que, por si, já me enerva.

Neste dia em particular, eu estava sozinho a conduzir. No início, andei devagar, por estradas secundárias. Sempre que um carro se aproximava, eu encostava e deixava-o passar. Mas, à medida que me aproximava da Blue Route, comecei a sentir-me mais assustado. Já sabia que ia ouvir muitas buzinadelas e ver muitos dedos.

E foi então que fiz algo que nunca fizera, em vinte e quatro anos a conduzir a minha carrinha. Decidi ligar os quatro piscas. Passei pela Blue Route e pela Schuylkill Expressway a 56 quilómetros por hora.

E agora, adivinha o que aconteceu?

Nada! Nem buzinas, nem dedos.

E porquê?

Quando liguei os quatro piscas, estava a dizer aos outros condutores: “estou com um problema. Estou vulnerável e a fazer o melhor que posso.” E todos compreenderam. Vi, muitas vezes, pelo espelho retrovisor, outros condutores que queriam passar. Mas não conseguiam, por causa do fluxo de tráfego. Mas, em vez de mandarem buzinadelas ou fazerem gestos, esperaram, por saberem que, de alguma maneira, o condutor à frente deles estava enfraquecido.

Por vezes, as situações impelem-nos a agir de forma corajosa e forte, mesmo quando não nos sentimos assim. Mas estas são raras e nem sempre resultam. É mais frequente obter melhores resultados se não nos fingirmos fortes quando nos sentimos fracos, ou nos fingirmos corajosos quando estamos assustados. Acredito mesmo que o mundo poderia ser um local mais seguro se todos aqueles que se sentem vulneráveis usassem uns quatro piscas que dissessem: “Tenho um problema e estou a fazer o meu melhor.”

Com amor,

Capítulo retirado do livro “Cartas para Sam” de Daniel Gottlieb (Editora Everest)

Sam, quero que saibas que “ser” diferente não é um problema. É, simplesmente, ser diferente. Mas “sentirmo-nos” diferentes é problemático. Quanto mais “sentes” as tuas diferenças, mais sozinho te vais sentir.

- Daniel Gottlieb

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